MORDENDO O PR�PRIO RABO

MARTELANDO O URINOL

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MORDENDO O PR�PRIO RABO
Affonso Romano de Sant'Anna

Acontece que estava lendo o livro "Artistes sans art?" (Artistas sem arte) de Jean Philippe Domecq, quando os jornais do Cear�, e logo os de S�o Paulo e Rio, noticiaram, com destaque, que o artista pl�stico nipo-cearence- Yuri Firmeza, havia pregado uma pe�a no Centro Drag�o do Mar, em Fortaleza. Ele havia se inscrito para uma exposi��o fazendo-se passar por um artista japon�s de fama internacional chamado Souzousareta Geijusuka. Inventou tamb�m uma divulgadora chamada Ana Monteja, mandou, pela internet, al�m de curriculum falso, uma entrevista onde tece considera��es te�ricas sobre arte, ind�stria e sociedade e umas photoshops do que seriam suas obras. Na �ltima hora estourou a not�cia: Souzousareta n�o � um japon�s de fama internacional que com sua presen�a estaria valorizando a arte da prov�ncia e a obra anunciada n�o existe.

Acendeu-se uma pol�mica. De quem a culpa da exist�ncia de um artista inexistente e, portanto, sem obra? Se a dire��o do Drag�o do Mar, se a imprensa ou se o pr�prio Yuri Firmeza, com esse nome verdadeiro, mas t�o engra�ado que at� parece fict�cio?

Devo dizer que li as declara��es de Yuri, e senti firmeza. O rapaz, que agora pode come�ar a ficar t�o famoso quanto seu simulacro, sabe de algumas coisas. Leu Pierre Bourdieu que, antes que surgisse a recente Nathalie Heinich era o sociol�gico que melhor enquadrara a quest�o da arte contempor�nea e do marketing. E o que Yuri diz faz sentido. Diz que usou o jornal como "suporte". Sem o jornal sua arte n�o existiria, pois " o jornal acaba sendo um meio de espetaculariza��o da arte". E com isto lembra Bourdieu que dizia que cinco minutos de jornal valem mais que uma palestra para cinco mil pessoas.

H� v�rias ila��es a tirar disto tudo. Acusar a dire��o do museu, acusar a imprensa ou o artista n�o esclarece a quest�o. H� que compreend�-la mais amplamente. Sim, vivemos um tempo de "artistas sem arte". Duchamp desde 1913, expunha objetos industriais como se fossem obras suas, assinava pintura alheia como sua, emitia cheques que ele mesmo fabricava. Yves Klein em 1958 fez uma "exposi��o" em Paris onde as paredes da galeria estavam sem nada. Creio que foi ele o autor de um cat�logo de exposi��es e obras suas inventadas, inexistentes. Portanto, essa quest�o "contempor�nea" � velh�ssima.

A maioria dos artistas chamados de "contempor�neos" caiu na armadilha que eles mesmos prepararam. Claro que alguns est�o faturando bem os paradoxos. H� uma s�rie de fal�cias em torno de certa arte em nossos dias. Primeiro, que tudo � arte, que todos s�o artistas. Segundo: n�o-arte e/ou anti-arte � igual � arte. Terceiro: negar a aura do museu e da galeria para entrar no museu e na galeria. Quarto: achar que s� existe arte onde h� transgress�o e que transgress�o por si mesma � arte. Quinto: dizer que a c�pia � igual ou melhor que o original, que o original � descobrir uma coisa nova para copiar. Sexto: o efeito, o esc�ndalo, a not�cia sobre a obra � mais importante que a obra. S�timo: a obra tem que causar "mal estar".

Essas e outras quest�es fazem com que o conceito de arte, hoje totalmente vazio e indefinido, seja confundido com "pegadinha", com "1� de abril", com esc�ndalo, qualquer happening e instala��o. Tempos estranhos esses em que o simulacro do sujeito vale mais que o sujeito, em que o simulacro da obra vale mais do que a obra.

A interven��o que Yuri Firmeza fez �, portanto, rica de significados. Tem significados que ultrapassam o que ele pretendia. � situa-se no paradoxo da pr�pria arte atual. Enquanto a arte contempor�nea, n�o conseguir desatar o n� dado por Duchamp ela vai continuar como uma cobra mordendo o pr�prio rabo.

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20.01.06- in "Estado de Minas " e "Correio Braziliense"

E-mail: santanna@novanet.com.br

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