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Resumo: Este artigo apresenta resultados parciais da investigação em desenvolvimento sobre a produção do artista goiano Paulo Fogaça, investigação que tem como objetivo compreender a inserção dessa produção no circuito artístico brasileiro dos anos 60 e 70. Além disso, é propósito dessa pesquisa investigar a constituição da mesma no meio artístico goiano, da forma como ela é legitimada e o lugar que lhe é destinado na configuração de uma história das artes plásticas em Goiás. O recorte aqui apresentado propõe expor um pouco da produção de Fogaça, cuja obra é pouco conhecida, mas que possui vínculos importantes com a arte realizada no Brasil nos anos 60 e 70. Este artigo propõe, ainda, levantar alguns aspectos de caráter estético e político, presentes na produção de Fogaça, relacionadas a procedimentos experimentais com novas linguagens artísticas. Palavras-chave: Paulo Fogaça, arte brasileira, arte e política, experimentalismo. Abstract:
This article presents partial results of the investigation in progress
about the production of the goiano artist Paulo Fogaça, and has as objective
to understand the insertion of this production in the Brazilian artistic
circuit of years ‘60 and ‘70. Moreover, it purposes to investigate the
constitution of the production into goiano artistic milieu, as well
as the form as it is legitimated and the place that is destined in the
configuration of a history of the plastic arts in Goiás. The clipping
presented here also exposes some pieces of Fogaça production, whose
workmanship little is known, although it possesses important bonds with
the art carried through in Key-words: Paulo Fogaça, Brazilian art, art and politics, experimentalism. Introdução: Contexto Geral A maior parte da produção artística de Paulo Fogaça foi realizada no contexto histórico dos anos 60 e 70; assim sendo, torna-se relevante o esboço desse momento de efervescência artístico-cultural e político-social no qual essa produção foi constituída e do qual faz parte. Os
estudos sobre a produção artística brasileira realizada a partir de
meados dos anos 60 até os anos Trabalhos voltados para a crítica não só relativa aos meios tradicionais de produção artística, mas, sobretudo, à censura e à violência imposta pelo poder militar se multiplicaram. Com a promulgação do Ato Institucional nº.5, em dezembro de 1968, o clima de perseguição e cerceamento de artistas e intelectuais recrudesceu. No ano seguinte foi suspensa a exposição, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), dos trabalhos selecionados para participar da VI Bienal de Paris. Este fato levou a uma reação por parte da Associação de Críticos de Arte e a um boicote, organizado fora do país, à Bienal Internacional de São Paulo. As influências das novas tendências mundiais – a Pop–art americana e a Nova figuração européia – relegaram a arte abstrata desenvolvida nos anos 50 ao passado. Tais influências abriram portas para discussões em defesa de uma visão crítica da produção artística brasileira, desembocando nos eventos Opinião 65 e 66 no Rio de Janeiro e Propostas 65 e 66 em São Paulo[1]. Esses eventos constituíram uma série de exposições e debates acerca das pesquisas estéticas em ação, e reivindicaram uma produção voltada para a realidade social brasileira. A presença marcante da figuração na arte brasileira desse período coloca a produção artística de caráter neofigurativo, de viés político e social, como questão central nas discussões realizadas em Opinião 65. Na mostra havia uma diversidade de tendências e estilos que se aglutinavam pela linguagem figurativa com temas relacionados à cultura urbana de teor crítico sobre a realidade brasileira. Segundo Marília Andrés Ribeiro: Considerada a primeira manifestação coletiva dos artistas plásticos depois do golpe de 64, Opinião 65 teve um caráter de denúncia, instigando os artistas a opinar sobre a situação política brasileira através de trabalhos neofigurativos e de propostas processuais. (RIBEIRO, 1998: 168) Em Opinião 66 as discussões estavam voltadas para a defesa e afirmação da nova vanguarda brasileira. Proposta 65 centrou suas discussões acerca do realismo vigente na produção brasileira. Enquanto que em Propostas 66 a situação da nova vanguarda brasileira foi tema central nas teses de Frederico Morais, Pedro Escosteguy e Hélio Oiticica, cabendo a este último a síntese dessas discussões. Oiticica (1983:31) expôs o que considerava “nova objetividade” como “uma tendência específica da vanguarda brasileira atual”. O que Oiticica declarava era o desenvolvimento de novas ordens estruturais, ou seja, experiências ambientais e sensórias na qual a participação do espectador era central: “dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de ‘experimentar a criação’, de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado.” (Op.cit., 31). Dos debates
empreendidos em Opinião 65/66 e Propostas 65/66, foi realizada
no MAM do Rio de Janeiro em Nos anos
É a partir desse contexto geral que esse artigo tentará levantar algumas questões que estão presentes na produção de Paulo Fogaça realizada, sobretudo, nos anos 70. Uma produção que se insere no programa da nova vanguarda brasileira de experimentalismo estético aliado a uma visão crítica sobre o momento histórico brasileiro. Paulo Fogaça Paulo Fogaça
(1936 -?) nasceu na cidade de Morrinhos, interior de Goiás, vivendo
atualmente na cidade de Goiânia. Destaco o período de No conjunto das obras de Fogaça estão serigrafias, objetos, desenhos, pinturas, audiovisuais e filmes super-8. Destaco três grupos de trabalhos para nesse artigo tecer algumas reflexões: um conjunto de objetos intitulados Totens, a série Hieróglifos e os trabalhos intitulados Campo Cerrado. Na construção de seus objetos, realizados entre 1976 e 77 no Estado de Goiás, Fogaça utilizou elementos extraídos do repertório imagético rural como enxadas, enxós, picaretas e foices, intitulando-os de Totem (figura 01). A pesquisa com ferramentas utilizadas no trabalho rural havia sido iniciada por Fogaça em 1969 com a obra Rosas dos Caminhos que integrou o I Salão da Bússola, realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em novembro do mesmo ano. Contudo, o artista só retomaria essa pesquisa quando de volta ao Estado de Goiás, já em meados da década de 1970. Figura 01. Totem 2-62-22. 1976 A escolha do objeto não se mostra casual ou fortuito, mas, antes, é carregada de intenções reflexivas acerca do momento político e social. A partir dos anos 60 artistas brasileiros inseriram objetos banais, do cotidiano, ou seja, objetos não pertencentes ao universo tradicional das artes plásticas em suas produções, tensionando os limites impostos pelos suportes tradicionais e propondo novos modos de se fazer e pensar arte. O que Fabbrini (2002) chamou de função reflexiva do ready-made de Duchamp pode ser aplicado também aos objetos de Fogaça, ou seja, sua aptidão (do objeto) de enfocar o entorno da obra. O contexto espacial e temporal que envolve o objeto atribui ao mesmo o estatuto de obra e a percepção de suas significações extrapola o objeto físico, material. Fogaça propôs seus objetos como vestígios da existência da sociedade brasileira no contexto da ditadura militar, da luta contra o cerceamento da liberdade. Desse modo, imprimiu um caráter arqueológico aos mesmos. Fóssil (figura 02), construída a partir da apropriação de ferramentas do trabalho no campo, é um demonstrativo desse procedimento. O artista incrusta uma enxada com marcas de deterioração em um bloco de pedra reconstituída. Ou ainda, imprime a imagem do arame farpado, à semelhança de um contra-relevo, em blocos de pedra (figura 03). Objetos deslocados de seu lugar e função de origem que carregam a sua história e as marcas de um tempo, objetos como depositários de memória que, na poética de Fogaça, revelariam a existência de uma sociedade que viveu sob um clima de medo e terror. Figura 02. Fóssil. 1976 Figura
Na série Hieróglifos o artista utilizou exaustivamente a imagem da farpa. O arame farpado, objeto agressivo, que fere e corta, é usado, sobretudo no meio rural, como delimitador das áreas das fazendas, impedindo a passagem do gado. Esse material foi transposto para os audiovisuais, serigrafias, pinturas, desenhos e objetos, ganhando um caráter crítico que alude ao cerceamento imposto pela ditadura militar. A farpa surge também em placas de trânsito (figura 04), cartas, partituras, (figura 05), sinais geométricos, histórias em quadrinhos associada a um tipo de escritura; uma escritura a ser decifrada, como sugere o título da série. Pensada enquanto linguagem, a mensagem que essa imagem faz circular estaria relacionada ao tempo e espaço vivido pelo artista, não só como momento presente, mas como memória de um passado que ficou retido e que agora se articula com o momento atual criando novas significações, mas como que veladas, por um código que a censura não traduziria. Metáfora ou mensagem política de uma época, essa série revela a posição crítica de Fogaça requerida pelo momento político e de renovação da sensibilidade. Uma produção que responde ao que se apresentava naquela época, que consegue articular a experimentação artística com a reação à repressão. Figura 04. Sem título. Da série Hieróglifos. 1976/1977 Figura 05. Hino. Da série Hieróglifos 1974 A relação estabelecida entre a imagem ou objeto concreto e a linguagem na produção de Fogaça é outra questão merecedora de discussão. Nos Totens, a titulação atribuída aos objetos acaba por inseri-los numa condição aurática. Um objeto de culto, um objeto representativo de uma determinada sociedade ou que guarda indícios do modo de existência dessa sociedade. Em A Pedra (figura 03) as inscrições das marcas do arame farpado sobre o bloco de pedra seguem à semelhança dos hieróglifos egípcios encontrados na Pedra de Rosetta, uma alusão direta que confirma o teor arqueológico de suas obras. Assim como Chapollim, o espectador ao se deparar com essa obra tentará decifrá-la e esse ato o levará ao conhecimento de algumas características ou condições sociais e culturais da sociedade na qual a obra surgiu. Aline Figueiredo, assim definiu o trabalho de Fogaça: Transpira em tudo, um sentido arqueológico. Uma linguagem/símbolo para ser decifrada no futuro, enigma de um universo rural. Também as enxadas e as foices, retiradas do uso, são apropriadas por Fogaça compondo objetos entrelaçados, testemunhos de um tempo e de uma circunstância. (FIGUEIREDO, 1979: 123). Fogaça denominou seus audiovisuais Hieróglifos (1973) e Campo Cerrado (1975) de Diapoemas, num jogo lingüístico que referencia o meio técnico utilizado para se conceber os trabalhos – diapositivos – em conjunção a um olhar humanista e sensível sobre a paisagem rural e o contexto social e político brasileiro. Campo Cerrado é um conjunto de trabalhos em papel (figura 06) e em linguagem audiovisual (figuras 07, 08 e 09) elaborados no interior de Goiás. Contudo, esses trabalhos não foram idealizados na mesma época, já que os trabalhos em papel datam de 1981, posteriores, portanto, ao audiovisual concebido em 1975, embora mantenham entre si coerência de desígnio. Morando numa chácara próxima à cidade de Goiânia, Fogaça registrou a paisagem do cerrado e a transformação sofrida tanto pelas mudanças das estações como pela ação depredadora do homem. Uma paisagem bastante forte na memória do artista que remonta a sua infância no interior de Goiás. O cerrado faz parte da memória de minha infância: primeiro era o lugar para o qual, em qualquer época, os tios vez ou outra escapuliam para as casas das “raparigas”; depois, na época das chuvas, íamos apanhar os pequis maduros debaixo das árvores. A mente e os sentidos trabalhavam as sensações: o mistério de uma coisa, a visão do verde que rebrotava e o perfume dos pequis.[2] Fogaça inseriu nesse audiovisual trecho de um texto descritivo da paisagem do cerrado do biólogo dinamarquês Eugênio Warming, de 1892, que, segundo o artista, se assemelha a uma “poesia científica” ou “ciência poética”[3]. Nos trabalhos em papel, o artista enquadrou lado-a-lado a paisagem (rural ou urbana) captada pela lente fotográfica e a paisagem abstrata limitada pelo arame farpado desenhada minuciosamente. A sugestão de uma síntese da paisagem é dada pelo artista de modo explícito no próprio título da obra; esta síntese configura uma visão particular de Fogaça de um ambiente que lhe é bastante familiar, pois o solo vermelho, o céu anilado e a vegetação escassa constituem esse universo representado pelo artista. A produção de Paulo Fogaça apresenta uma pesquisa inserida no ideário da nova vanguarda brasileira dos anos 60 e 70 que aliava o experimentalismo das linguagens e o engajamento político. Demonstra um olhar atento aos novos meios tecnológicos de produção de imagens e de objetos artísticos e com os problemas gerais do Brasil. Transitando entre o universo rural e o urbano, apreende criticamente as questões sócio-culturais e artísticas existentes nos mesmos materializando-as em suas produções. Figura 06. Campo Cerrado. Sinopse: A Vida Rural. 1981
Figuras 0 7, 08 e 09. Campo Cerrado. Slides 04, 36 e 65. 1975 Referências Bibliográficas: ALVARADO, D.V.P. Figurações Brasil anos 60: neofigurações fantásticas e neo-surrealismo, novo realismo e nova objetividade. São Paulo: Itaú Cultural; Edusp, 1999. CANONGIA, L. O legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. DUARTE, P.S. Anos 70: a arte além da retina. In.: Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2005. p. 133-145. FABBRINI, R.N. O signo conceitual. In.: FABBRINI, Ricardo N. A arte depois das vanguardas. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002. p. 135-151. FABRIS, A. (org.). Arte & Política: Algumas possibilidades de leitura. São Paulo: FAPESP; Belo Horizonte: C/Arte, 1998. FIGUEIREDO, A. Artes Plásticas no Centro-Oeste. Cuiabá: Edições UFMT/MACP, 1979. FREIRE, C. O presente-ausente da arte dos anos 70. In: Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2005. p. 147-155. FREITAS, A. Poéticas políticas: as artes plásticas entre o golpe de 64 e o AI-5. História: questões & debates, Paraná, n. 40, p.59-90, 2004. HOLLANDA, H.B. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde:1960/1970. São Paulo: Brasiliense, 1980. _______ ; GONÇALVES, M.A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1987. MORAIS, F. A crise da vanguarda no Brasil. In.: MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1975. p.69-177. OITICICA, Hélio. Situação da vanguarda no Brasil. Arte em Revista, São Paulo, ano 1, n.º2, março de 1983. p. 31. REIS, P. Arte de vanguarda no Brasil: os anos 60. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2006. RIBEIRO, M. A. Arte e Política no Brasil: a atuação das neovanguardaas nos anos 60. In: FABRIS, Annateresa (org.) Arte & Política: algumas possibilidades de leitura. São Paulo: FAPESP; Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
Notas: [1] A mostra Opinião 65, organizada por Ceres Franco
e Jean Boghici, reuniu artistas brasileiros e estrangeiros entre os
dias 12 de agosto e 12 de setembro no Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro. Opinião 66 foi uma mostra coletiva realizada na Galeria
Atrium no Rio de Janeiro. Propostas 65 e 66 foram realizadas na Fundação
Armando Álvares Penteado - FAAP, [2] Depoimento dado pelo artista em entrevista concedida, via email, em 28 de agosto de 2005. [3] Termo utilizado por Paulo Fogaça
Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 08 - Outubro de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservado OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores. |