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Resumo:
Em uma resenha crítica do evento de dança contemporânea Conexão
Sul 2006 (Porto Alegre, maio de 2006), o texto discute algumas questões
pertinentes das artes na contemporaneidade, entre elas: a importância
do corpo nas artes cênicas; a diferença (ou não) entre as artes cênicas,
a performance e as artes do corpo; o papel da academia na relação entre
o fazer e o analisar artístico num contexto (aparentemente contraditório)
de especialização e multiplicidade de meios de criação, inclusive as
chamadas novas tecnologias. Como fazer arte a partir do corpo?
Qual o papel das artes no processo de des-objetificação do corpo, devolvendo-nos
o poder de redançar e reescrever nossas memórias em constante transformação?
Sob a perspe Palavras-Chave:
Corpo, dança, performance, interartes, contemporaneidade, esc Abstract:
In a critic review of the contemporary dance event South Conne Key Words: Body, dance, performance, interarts, contemporary, writingdancing. “Quem consegue
ver ação “Agitação
emerge do Repouso 1. O que é que a Bahia tem (em comum com Brasília)? O evento Conexão Sul 2006, realizado em Porto Alegre de 25 a 28 de maio, teve um formato que questionou a disparidade freqüente em muitos eventos de dança, divididos entre mega-espetáculos e o meta-cientificismo acadêmico. Com uma formalidade informal, permearam-se fronteiras entre prática e teoria, debate e espetáculo, criação e ensino, numa orientação aberta e flexível. Doloroso foi saber do quadro das “artes cênicas” que são só teatro em algumas instâncias, como mencionado por alunos da Universidade Federal de Santa Catarina. Segundo seus relatos, alunos de “artes cênicas” não foram autorizados a realizar o estágio final em dança por falta de orientação especializada dos professores, majoritariamente de teatro. Este é um quadro complexo, cujas implicações envolvem não somente nossa compreensão do que venham a ser as artes e destas na academia, mas também, e principalmente, do papel do corpo nas artes contemporâneas e a relação deste com a análise e a escrita. Estes são alguns dos tópicos discutidos neste artigo. Minha surpresa
diante dos relatos acima advém da minha experiência, bem diferente,
na Universidade de Brasília. Talvez por se tratar de um Instituto de
Artes, que abarque Artes Plásticas e Cênicas, estas estão sempre em
diálogo curricular, em exposições e produções. No quadro de professores,
assim como no enfoque das aulas, dança e teatro são também igualmente
enfatizadas. Ali, no curso de Licenciatura Já as aulas de Teatro com João Antônio eram totalmente baseadas em dinâmicas cênicas a partir do corpo. Lembro-me que na primeira aula eu havia vindo direto do meu trabalho como enfermeira, e ele falou ao final, após muita experimentação no chão, olhando para mim: “E nada de vir com roupas muito arrumadas e branquinhas porque vamos trabalhar bastante no chão”. Encontrei João cerca de dez anos mais tarde, numa das comissões da CAPES, e contei para ele que vinha seguindo aquela instrução até hoje, com muito prazer. Já em Técnica de Dança, fiz aulas com Eliana Carneiro, uma das primeiras alunas de Regina Miranda no Brasil, e que recebeu um convite de Kazuo Ohno para estudar no Japão após ele ter visto seu espetáculo. Em seus espetáculos, ela experimentava a arte como uma “incorporação” de estados transitórios em um corpo autônomo (isso nos anos de 1980). Ela referia-se a sua dança sempre como um “lanjal”, um concentrado do processo, porque nossa intenção não é chatear o público nem ser didático. Esse lanjal ela explorava de todas as formas possíveis. Na mesma temporada, dançou a “mesma” peça com camisola, com roupa cotidiana, de lingerie, com peruca, sem peruca, etc. Finalmente
no Conexão Sul consegui fazer a Conexão Nordeste-CentroOeste. Pude ali
entender a ligação entre Salvador e Brasília, duas cidades totalmente
díspares em suas histórias, culturas, corporeidades, climas, economias,
arquiteturas e rituais cotidianos. Como salientado por Sofia Cavalcanti,
algumas estruturas da fundação das instituições permanecem, mesmo após
muitos anos e eventos políticos. Esse é o caso da aproximação entre
as artes na UFBA, como nos esclarece Jussilene Santana (2006): A
criação de uma Escola de Teatro, em 1956, na então Universidade da Bahia
fazia parte de um programa arrojado empreendido pelo reitor Edgar Santos.
Seu projeto para a superação do atraso baiano pregava a necessidade
de convergência entre o poder econômico e cultural. Tal projeto de cultura,
capitaneado pela Universidade, compreendia, entre outras iniciativas,
a criação dos Seminários de Música (1954), com a vinda do maestro austríaco
e ex-professor de Tom Jobim, Hans Joaquim Koellreutter, da criação da
Escola de Dança (1956), que já nasce Contemporânea com a polonesa Yanka
Rudzka, da incorporação da centenária Escola de Belas Artes e da criação
da Escola de Teatro. Até hoje, a Universidade Federal da Bahia é a única
no país que reúne as quatro expressões artísticas no ensino superior.
... A reforma universitária patrocinada pela Ditadura Militar, em 1969,
orientada pelo espírito cientificista do acordo MEC/USAID, provoca uma
queda na produção cultural da instituição, que a partir de então passa
a se chamar Universidade Federal da Bahia. ... As antes cultuadas escolas
de Dança, Teatro e Música perdem a autonomia e são transformadas em
departamentos da Escola de Música e Artes Cênicas. Somente, em 1988,
elas voltariam a ser novamente independentes. Se no contexto
modernista o audacioso era separar para declarar autonomias, e na ditadura
a união representava o achatamento das diferenças, hoje associar dança
e teatro significa multiplicar as possibilidades de criação, compreensão
e relacionamento com/no mundo. Nesta perspectiva, em 1997, fundamos
o Programa de Pós-Graduação Além disso,
temos vários professores da Pós-Graduação lidando com formas e questões
fronteiriças como dança-teatro, performance e espetacularidade. Não
vemos estas formas como estanques, por isso as linhas de estudo não se dividem em Teatro, Dança, Performance. Nem tampouco dividimos
as pesquisas Inicialmente,
a idéia de Armindo Bião era a de aglutinar os professores de dança e
de teatro para fortificar a ambas, qualificando professores nas duas
artes, que poderiam eventualmente se multiplicar. Esta multiplicação
é inclusive um sinal positivo de que, apesar das dificuldades de É claro
que essa divisão setorial pode trazer benefícios, mas deve ter procedência,
inclusive histórica, para não gerar uma situação de contradição inútil
(já que a contradição pode ter um papel estético bem importante, mas
não é o caso). Não podemos impor uma setorização em prol de recursos
financeiros e – ainda pior – em nome de uma arte que justamente recusa
sua própria natureza: a de troca e contaminação. Afinal, a linguagem
da dança é aquela de interação do corpo em movimento com/no espaço dinâmico:
“... O corpo vivo é mais do que uma coisa estendida num espaço visual,
e sim todas as relações que suscita e que em certa medida são absolutamente
singulares” (GREINER, 2005, p.101). Assim sendo, não seria coerente
implantar em Salvador uma proposta (administrativa e teórica) adequada
à história da academia de outro(s) local(is), sem os devidos questionamentos
e modificações. Portanto, no momento, a UFBA oferece duas opções distintas
em mestrado (artes cênicas e dança) e, por enquanto, uma opção de doutorado (artes cênicas). 2. Como fazer arte a partir do corpo Em How
to do things with words (Como fazer coisas com palavras, 1962)
J. L. Austin defende uma “escrita performativa”, cuja força está no
ato da escrita, em como ela é realizada. Esta escrita dinâmica
é ação, ao invés de antecipar, descrever ou suscitar uma ação.
Já nossa busca e desafio nos últimos anos vem sendo o de fazer arte
a partir do corpo. Não é por acaso que Christine Greiner nomeou
seu curso de Artes do Corpo, ao invés de dança, teatro, artes cênicas,
etc. E, além disso, temos ainda o desafio de escrever a partir e a respeito
deste corpo em cena, respeitando sua natureza dinâmica. Esta não é coerente
com conceitos ou idéias fixas ou duais, mas sim com estruturas abertas
em constante (des)organização. Por isso
termos-chave para Laban são “transições” e “rastros” de movimento. O
importante é o que acontece entre pontos no espaço, no processo
e não no objetivo final. Movimento corporal implica simultaneamente
em presença e ausência, acontecimento e desaparecimento, incluem em
si sua própria negação. Diferente de várias poses (“presenças”) coladas
numa seqüência, movimento pode ser compreendido como performance
ou algo que só existe no decorrer do tempo, como constantes “evaporações”:
“Movimento é uma fábrica do fato de que nós estamos, de fato, evaporando”
(FORSYTHE; BRANDSTETTER, 2000, p.102). Também em termos da nossa constituição
bioquímica, a cada instante somos substancialmente outro corpo (GAIARSA,
1995, p.34). A cada movimento (repouso latente) ou repouso (movimento
latente), re-escrevemos/re-lemos o rastro do passado no futuro: Estou sempre tocando a última ação com a nova coisa que estou fazendo, mas o percurso não é uma linha que desenhamos atrás de nós como quando esquiamos. Isto está no passado, enquanto que nosso percurso na dança já está sempre no futuro. (TESHIGAWARA; BRANDSTETTER, 2000, 110) Como no Anel de Moebius ou Figura Oito (descrita por Laban em termos de movimento, 1974, 98), ou mesmo como no espelho mágico de Escher (ERNST, 1996, pp.99, 76), dualidades tornam-se contínuas gradações em transformação. Ao invés de ser uma progressão linear, o tempo é uma inter-relação retroativa tridimensional, do futuro para o passado, re-criando o novo (FERNANDES, 2000a, pp.123-128). Como a própria natureza do corpo, movimento e repouso evocam constante mudança e lembrança, simultaneamente (e não respectivamente, apesar de podermos teoricamente associar mudança a movimento e memória a repouso). Paradoxalmente, movimento (inovação) é a memória (manutenção) de si mesmo. A memória não apenas imagina ou representa nosso passado, mas o atua: “Memória torna-se agente, jogador e diretor. A memória coreógrafa o reconhecimento do movimento” (BRANDSTETTER, 2000, p.110). Assim, movimento é a história do corpo. Por isso não podemos mais usar a tal “natureza efêmera da dança” como uma justificativa (de fato, desculpa) para não escrever sobre a dança. Contextualizando a escrita performativa de Austin, a pergunta seria How to dance with words, o que tenho traduzido como escrevendançando (FERNANDES, 2000), também na figura oito. Dentro da figura oito, onde dualidades opostas e excludentes passam a ser transições entre diferenças, a “efemeridade” da dança passa a ser exatamente sua capacidade de registro. Como nos esclarece José Gil (2001, p.202): Sempre se pensou a efemeridade da dança como um defeito ou um handicap relativamente às outras formas de arte. ... Ao mesmo tempo que apresenta uma sucessão de movimentos visíveis do corpo, toda dança cria um fundo de movimento desaparecente [mouvement disparaissant] que só ele torna possível o surgimento das formas e a sua visão “efêmera”. Neste sentido – de uma efemeridade construída, que é própria de toda a dança -, não há forma efêmera a não ser sobre um fundo de desaparecimento. Por outras palavras, o desaparecimento, “o invisível”, a “não-inscrição” constituem espécies de écrans virtuais, de coreografias negras que acompanham necessariamente qualquer seqüência deliberada de movimentos dançados. É uma coreografia
do tempo, como o avesso da coreografia do movimento. Isso é
o que Laban denominou de rastros de movimento ou traceforms, já no início do século passado. Este campo energético
criado pelo movimento no espaço é o que nos permite fazer uma notação
dinâmica, coerente com a natureza do corpo. Laban foi um visionário
que, propondo-se a estudar o movimento humano ao invés de estipular
modelos e estilos de dança, e esboçando uma linguagem estruturada nessa
natureza paradoxal do movimento, provocou uma mudança radical de paradigma.
Aliás, questionou o estabelecimento de paradigmas, pois seu Sistema
é assim denominado por ser aberto e inclusivo. Esta revolução na dança
libertou o corpo para organizar estórias com sua própria linguagem,
à sua maneira. Qualquer que seja a estória, é sempre a estória do corpo,
pelo corpo, para o corpo. Os meios são a linguagem do corpo, que deixa
de ser objeto, instrumento e intérprete para ser o autor e contador
de sua própria história enquanto memória em movimento. Assim,
a liberdade do corpo reside exatamente na sua habilidade de articular
sua linguagem, ao invés de justificar sua inabilidade de registro. Laban
teria sido um grande amigo de Austin. Então não é à toa que a dança-teatro
cruzou caminhos com a performance art européia do início do século
XX (PREVOTS, 1985) e com o nascimento da dança pós-moderna norte-americana
dos anos de 1960[2] – ambos enfocando
e desconstruindo movimentos do cotidiano em cena (PARTSCH-BERGSOHN,
2004), e propondo a emancipação do corpo. Como no
“corpo vivo” (GREINER, 2005, p.101), a Linguagem do Movimento de Laban
(LABAN 1974) organiza-se a partir de relações e conexões
entre conceitos corporais (ao invés da estipulação ou fixação destes),
intrisecamente paradoxais e dinâmicos (HACKNEY 1998). Por isso suas
aplicações e desdobramentos vêm até os dias de hoje. Por exemplo, o
coreógrafo William Forsythe, sob a assessoria constante de Valerie Preston-Dunlop
(discípula de Laban e editora da maioria de suas obras), vem inovando
com seus experimentos com processos algorítmicos em computador. Preston-Dunlop
(2005) vem estudando também meios de notação computadorizada e mutável,
adequados às obras contemporâneas abertas. Além disso, conceitos e práticas
esboçadas por Laban há um século, como o Anel de Moebius ou os conceitos
de fluxos de energia e intensidades, vêm sendo crescentemente usados
por diversos autores da contemporaneidade, como Jacques Lacan, Bonnie
Bainbridge Cohen (Centramento Corpo-Mente), Sylvie Fortin (Educação
Somática), Ivaldo Bertazzo (a partir da técnica de S. Piret e M. M.
Béziers), Elizabeth Grosz (Feminismo Corpóreo), Deleuze e Guattari.
Mas ainda assim profissionais da área da dança insistem Como seria
possível uma única forma de notação, fixada em preceitos rígidos, dar
conta da transitoriedade da dança contemporânea, das várias estéticas
lançadas, de corpos díspares dançando pensamentos de coreógrafos e não
códigos pré-estabelecidos em técnicas já fundamentadas? A busca de formas
de registro, de análise, ou de criação, é de grande valor, mas pede
por uma abordagem específica, imbricada no paradigma emergente da dança
na era digital. (SANTANA 1999, p.93) Isso é
o que a autora poderia ter perguntado para a Profa. Dra. Gretchen Schiller,
especialista em Laban aplicado à dança e novas tecnologias. Como um
exemplo de coreógrafo trabalhando nessa linha, a autora ainda aborda
criações de William Forsythe, sem se lembrar da sua assistente Preston-Dunlop
(Forsythe vem apenas confirmar a atualidade de Laban). Como já nos avisou
Foucault (1980), a ciência – em especial a medicina – nunca irá conceder
poder, e muito menos saúde – ao corpo. A ciência nasceu exatamente da
retirada de poder do corpo, e devolvê-lo ao corpo significaria a extinção
da própria ciência. Mais uma vez, a linguagem é fundamental: foi através
do discurso médico que a ciência objetificou o corpo e separou sensação
(do paciente) e conhecimento (do médico). A verdade estaria no discurso
científico lógico e “verdadeiro” (dominante) sobre o corpo mudo e fraco
(dominado). Claro que
as ciências “exatas” vêm se flexibilizando e incluindo conceitos como
o da incerteza, da instabilidade e da complexidade. A atualidade de
Laban pode ser vista inclusive em escritos do professor de astronomia
Jorge Albuquerque Vieira, que associa o pioneiro a estas recentes idéias
de complexidade nas ciências (VIEIRA 1999). Mas conceitos como estes
sempre pertenceram às artes. É muito bom se não precisamos mais nos
opor às ciências e se estas têm inclusive comprovado a importância fundamental
do corpo enquanto produtor de conhecimento e troca, diluindo a dualidade
corpo-mente. Mas então, que demos ao corpo o que sempre foi mesmo dele.
Podemos mas não precisamos impreterivelmente usar teorias
científicas para legitimizar o discurso artístico. É como a apropriação
de um discurso que já era nosso e que agora precisamos pedir emprestado
para nos valorizar (o que acaba por nos enfraquecer, pois de novo valoriza
a voz das ciências). Temos este
exemplo de apropriação nas ciências humanas também. Ultimamente, autores
muito citados nas artes cênicas têm sido Deleuze e Guattari, consagrados
por uma reconfiguração radical da ontologia em termos instáveis e transitórios
(como intensidades, fluxos, e um constante tornar-se ao invés de ser)
numa configuração rizomática (ao invés de dual ou linear). Feministas
vêm criticando estes dois autores justamente por se apropriarem de preocupações
e maneiras femininas de organização, incluindo-as mais uma vez no discurso
masculino para supostamente legitimá-las, mas de fato continuando a
dominá-las (GROSZ, 1994, pp.160-183). Ou seja, distribuir o poder e
a autonomia talvez seja uma boa maneira de lidar com relações de dominação
(entre ciência e arte, mente e corpo, mulher e homem, teatro e dança,
etc.). As artes
ainda estão bastante impregnadas de discursos de objetificação do corpo.
Dimitri Cervo, compositor contemporâneo e professor da UFRGS, ao assistir
a um dos debates do evento Conexão Sul 2006, perguntou-me timidamente:
“Sou leigo no as Se a consciência
é uma ação movida por um propósito (Peirce in KATZ) então “dança é o
pensamento do corpo” (KATZ, 1994). Logo no cotidiano (quando supostamente
não estaríamos dançando) não pensamos com o corpo (isto é, não realizamos
ações a partir do corpo, com um propósito corporal). Os termos
“cotidiano” e “extra-cotidiano”, usados indiscriminadamente em textos
das artes cênicas nos últimos anos, foram criados por Eugenio Barba
E é justamente
neste trânsito que a dança é mais transgressora: quando contamina o
cotidiano e passamos a pensar com o corpo e a partir do corpo em todas
as instâncias, inclusive a pessoal e subjetiva, e principalmente nas
automatizadas ações cotidianas. Ou seja, deixo de ser “um corpo” (que
soa mais como “um carro”, “um sapato”, etc.) para ser quem sou. Afinal,
temos um corpo ou somos um corpo? Laban estava bem ciente dessa
questão, e portanto, sempre que fazemos uma descrição de movimento segundo
seus princípios, nunca usamos a palavra “corpo” para descrever qualquer
ação. Usamos preferencialmente o nome da pessoa, ou “o dançarino”, “a
atriz”, “o performer”. Por isso
também Laban estruturou seu Sistema em termos cotidianos, isto é, utilizados
por todos nós em contextos variados, do particular ao público, vinculados
ou não a processos artísticos. Isto contribui para que seu Sistema não
se feche em uma linguagem abstrata, restrita a um grupo de especialistas,
ou a uma só área do conhecimento. Supostamente, qualquer pessoa consegue
entender uma descrição verbal de movimento feita através da Análise
Laban de Movimento (Laban Movement Analysis, LMA), ou consegue
fazer uma aula ou participar de um processo criativo baseado Apesar
de nunca termos declarado que o Sistema Laban é completo, trata-se da
notação de movimento mais altamente desenvolvida que existe. Não estou
levando em consideração métodos científicos de análise e gravação de
movimento, mas sim uma abordagem prática e humanista que “fala” a linguagem
da pessoa comum. Esta também
seria a vantagem do vídeo, já que qualquer pessoa pode aprender uma
seqüência de dança ao imitá-la do vídeo. No entanto, como tem nos mostrado
estudos comparativos entre os dois métodos – aprendizado através da
notação e através do vídeo –, o primeiro envolve um processo criativo
de estudo e compreensão do movimento, e não apenas sua imitação, gerando
movimentos mais precisos e expressivos (ARCHBUTT, 2005, p.7). Muitas
vezes, no entanto, o uso de termos cotidianos confunde o significado
técnico específico, que não é exatamente o mesmo. De fato, o Sistema
Laban é uma linguagem especializada, que envolve uma formação prático-teórica
complexa, traduções e atualizações interculturais através de décadas.
No entanto, como uma linguagem em movimento, Sistema Laban é aberto
a mudanças e int Talvez
Greiner tenha nomeado o corpo de “vivo” justamente para enfatizar ser
um corpo, ao invés de tê-lo. E não é por acaso que justamente ela realizou
uma análise extensa do butô japonês e o “corpo morto” (GREINER, 1998).
O “corpo morto” do butô não é um objeto inerte e sem vida. Pelo contrário,
sua morte é a condição de sua vida, para que possa renascer como outro
ser, “incorporar” (como dizia Eliana Carneiro). Aí está de novo a questão
do aparecimento-desaparecimento citado por Gil, e das traceforms
de Laban. Sob este ponto de vista, dança passa a ser mais que o pensamento
do corpo para ser a memória do que somos. E (d)escrever essa dança é deixar-se contaminar por este “sujeito”
(ex-objeto) de estudo: o movimento corporal. Mais do que o “corpo”,
o que nos interessa é o movimento corporal, entendido como a dinâmica
entre repouso e movimento, em gradações qualitativas. Como nas linhas
do PPGAC, na linguagem Laban e na de Austin, o importante é o como: - Como abordar um tema de pesquisa? Ou melhor: Como é que este tema pode ser abordado? (e cada tema terá um como específico que só o pesquisador saberá decifrar, ao invés de impor) - Como se processa o movimento? - Como
fazer coisas com palavras? Assim,
estas abordagens são coerentes com uma corporeidade subjetiva (FAGUNDES
2006), adequada às artes na contemporaneidade. No IV Congresso Nacional
da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas
(UNI-RIO, 2006), Ângela Materno afirmou: “A tecnologia não será a arte
do futuro”. Esta frase visionária pode ser completada pela declaração
feita por Laurie Anderson, já em 1993: “ética é a estética do futuro”.
Hoje não podemos mais impor a lógica de um lugar no outro, e de um campo
no outro. Talvez caiba exatamente às artes - a última área nos cadastros
acadêmicos e de pesquisa - questionar os métodos teóricos das demais
áreas, reinventando abordagens realmente criativas e transgressoras. 3. Escrevendançando. As atividades
propostas no evento Conexão Sul 2006 tiveram uma abertura estrutural
transgressora e inovadora. Com certeza já é um exemplo da abordagem
artística transformando formatações científicas datadas que dividem
público e palestrante ou público e dançarino. Pela manhã, os workshops
eram organizados como “oficina/debate”, onde se praticou e discutiu
técnicas e poéticas de coreógrafos que se apresentaram na noite anterior.
De tarde, mesas redondas e palestras foram substituídas por um espaço
aberto de discussão, denominado “cafezinho e bate papo”, com a exposição
de alguns convidados e conversa aberta com todos. Em meio ao cafezinho,
ocorriam interferências que mesclavam ainda mais os espaços, objetos
e ações de público e performers. À noite, os espetáculos, de várias Comecemos
nossa análise dos espetáculos de modo bem coerente, substituindo “escrever”
por “dançar” no fragmento de Clarice Lispector (1992): “Até hoje não
sabia que se pode não dançar. Gradualmente, gradualmente, até
que de repente a descoberta muito tímida: quem sabe, também eu poderia
não dançar. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável”
(itálica minha). Talvez seja este o desafio proposto por Cínthia Kunifas
e Mônica Infante (PR) em Corpo Desconhecido. Em uma época de
louvor à velocidade ex O feminino parece ser um dos temas de Universo, do Aplysia Grupo de Dança (SC). A coreografia é um espetáculo de encaixes perfeitos: as dançarinas em movimentos tecnicamente bem executados, com expressividade e clareza espacial, interagindo com exatidão entre si, com a música, cenário, figurino, etc. Nessa matemática perfeita, até os “erros” e os gestos “casuais” são bem encaixados; tudo tem seu lugar e momento exato. As dançarinas parecem não ter tempo para “não-dançar”, e assim deixar a (i)lógica do corpo realmente tomar posse da cena. O espectador, como as dançarinas, também não pára sua função. Assim, um espetáculo que começa muito bem, aos poucos deixa o público cansado. Afinal, aonde é que tanto movimento vai nos levar? Novos elementos vão sendo inseridos, mas sempre engolidos pela estrutura coreograficamente perfeita, como se tudo sempre tivesse seu lugar. Já ao final, são inseridos elementos poderosos que gerariam toda uma coreografia, mas, novamente, não há tempo de explorá-los. Neste Universo, não há tempo para que o Universo realmente se manifeste com todas suas imperfeições e suspensões. Em meio a tantos elementos e tantas marcas a seguir, e mesmo experimentando sucos de todas as cores (última cena), o corpo continua sedento. Como nos disse Bobby Miller (1994): “Já estive em quase todo lugar, encontrei quase todo mundo, vi quase tudo, fiz a maioria das coisas, e ainda estou esperando para ser descoberto. A noite tem mil olhos e eu sou um dançarino cigano ainda faminto por mais”. Esta também
é a impressão provocada pelo espetáculo Error Solo, de Elke Siedler (SC). A dançarina já havia chamado a atenção
na noite anterior, no espetáculo Universo. Mesmo em meio a tantas
dançarinas de excelente nível técnico e expressivo, Elke realmente se
destacou. Sua fluidez e facilidade de movimentação são impressionantes.
Seus gestos são sempre interessantes como se seu corpo fosse em si mesmo
um Anel de Moebius torcendo-se sobre si mesmo sem nunca ter lados opostos.
Tudo é ao mesmo tempo contínuo e fragmentado. Mas não seria tanta habilidade
e beleza uma faca de dois gumes?! Diante de tamanha responsabilidade,
Elke não pode apenas experimentar diferentes formas de alongamento no
chão como lhe indicou seu médico após um sério problema de coluna. Esta
teria sido a idéia que impulsionou a criação do solo, segundo declarou
Elke no debate após a apresentação. Tudo vai
muito bem, instigante, cativante, etc., até o momento em que ela se
deita no canto à frente do palco, e pára um pouco. Mas Elke não aproveita
este “ponto de mutação” para mergulhar no diferente e inusitado. Infelizmente,
prefere continuar suas explorações exatamente como antes. Aos poucos,
seu excesso de movimentação, sempre com as mesmas qualidades, claramente
não a levam a lugar algum, e novos elementos são inseridos para renovar
o que já se perdeu: a voz do corpo (certamente bem diferente da do médico).
Confesso que fiquei muito frustrada com Error Solo, pois novamente
de erro não tinha nada. Claro que, se compararmos a movimentação de
Elke neste solo com os de balé, dança moderna ou jazz, classificaríamos
seu solo como “erro”, pois parece sempre fazer o passo diferente do
convencional por excesso de elasticidade. Mas a fragmentação e o excesso
já são convencionais há muito tempo também. Lembro-me
que Douglas Dunn, pioneiro da dança pós-moderna norte-americana, pediu
certa vez que improvisássemos como se nunca tivéssemos feito uma aula
de dança na vida. E aqui cabem também as danças de desconstrução e fragmentação,
que já viraram uma estética padrão. Talvez seja bem mais difícil para
Elke executar esta tarefa do que para muitos de nós. Mas afinal, para
que dançar o que já sabemos/somos/conhecemos? Como nos escreveu Clarice
(1992, p.35), que mais uma vez troco por dança: Dançar é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de “memória”, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva. Nossa memória
cultural faz parte desse dossiê desconhecido que buscamos reinventar
a cada mo(vi)mento. A relação entre tradição e contemporaneidade tem
sido um tópico central nas discussões de artes cênicas. Na obra Sentidos do Quadril, de Roberta Malheiros (RS), ficou claro que a
tradição não apenas dialoga com a contemporaneidade. O tradicional é
contemporâneo. Através do Sistema Laban/Bartenieff, Roberta analisou,
isolou e reorganizou movimentos da dança do ventre em unidades ao mesmo
tempo abstratas e culturalmente interessantes. Podíamos claramente ver
a origem étnica dos movimentos, mas não estavam associados aos diversos
elementos da dança do ventre, como dançar em pé, usar figurino e maquiagem
brilhantes, música étnica, etc. Ao depurar
elementos essenciais de cada movimento, Sentidos valoriza a dança do ventre em sua essência, e a expõe num
olhar clinicamente estético. Roberta parece ter usado e transgredido
o método científico de dissecar cadáveres (usado para conhecer e controlar
corpos) para esmiuçar a dança do ventre em unidades autônomas e auto-transformadoras,
gerando movimentos inusitados como a Figura Oito com os quadris em posição
deitada, ou um caminhar fragmentado e interessantíssimo a partir da
Conexão Trocanter-Trocanter. Tanto a música quanto o figurino eram também
abstrações coerentes com a dança do ventre, valorizando os movimentos
decupados. Já a expressão facial, extremamente importante na dança do
ventre, foi propositalmente neutralizada, gerando um cinismo contemporâneo
que parece mais uma vez criticar a atitude científica de afastamento
da realidade. Em uma atitude despretensiosa e c(l)ínica, Roberta demonstrou
que uma dança Ao ser
indagada quanto aos estímulos para a criação de Attraverso, Gladis Tridapalli falou de uma série de leituras que estava
fazendo, todas simultaneamente, inclusive textos de minha autoria. Apesar
da coreografia de Tridapalli e Daniella Ney (PR) ter uma estrutura conceitual
interessante como um todo, falha exatamente por seu excesso de didática.
Neste caso, a dança parece ter se tornado o pensamento da dança, e o
corpo seu fiel demonstrador. Claro, não queremos uma dança sem reflexão
crítica, mas não podemos deixar que esta engula nossa criação e expressão.
A seriedade das dançarinas durante a peça, diferente da de Roberta,
não contrastava nem acentuava aspectos do movimento. Pelo contrário,
confirmava um didatismo desnecessário, e a subserviência do corpo. De
fato, às vezes não sabia se estavam sérias, preocupadas, cansadas, ou
simplesmente chateadas por ter que dançar. Que alívio foi ver Gladis
finalmente dando um sorriso no jantar após o evento! Talvez
Attraverso ficasse bem mais travêsso e atravessasse a separação entre dançarinos e público, dança e teoria,
se as dançarinas se propusessem a um desafio ainda maior (e quase impossível):
o da simples naturalidade (ao invés da seriedade robótica e desvitalizada
que vemos em tantos corpos e rostos famosos dançando a tal “dança contemporânea”
mundo afora, e que virou uma moda imposta pelos anglo-saxões em nossa
cultura desde os anos de 1970). Attraverso seria mais interessante
como interferência, acontecendo no saguão do teatro enquanto pessoas
transitassem. Ou então, como fazia Eliana Carneiro, as dançarinas pudessem
explorar a obra de muitas maneiras variadas, cada noite de um jeito,
experimentando com diferentes figurinos, expressões faciais, etc., até
encontrar uma versão mais concentrada e menos didática. Attraverso nos mostra que é muito difícil ser natural, e simplesmente
explorar o mundo e as possibilidades como teríamos feito antes de qualquer
aula de dança (aliás, antes de qualquer aula). Por isso precisamos de alguns “truques”, como o do humor. Segundo Maria Cândida Ferreira de Almeida (2006, p.2), o riso é a ferramenta feminina para desconstruir a hegemonia masculina: [Atualmente]
há uma redefinição dos paradigmas que orientaram por largo tempo a determinação
do gênero masculino e de como ele exercia seu poder e organizava sua
hegemonia. O riso pode ser corretivo, o uso da sátira seiscentista tinha
este propósito. Na atualidade a sátira é uma forma de enunciar a crítica,
não só pela ridicularizar e a conseqüente humilhação do ridicularizado,
como quando era produzida com o intento de educar, mas na atualidade
com a finalidade de criticar e também, claro, reconduzir ao politicamente
correto os sujeitos que atuam em desrespeito à diversidade. ... O riso
também está associado ao prazer, ao deleite, ao gozo, à felicidade nesta
vida, estados psicológicos indesejados para as religiões que querem
que a existência seja um mar de lágrimas e que o gozo esteja somente
no paraíso. Isto é
o que podemos ver em Aqui jazz minha dança, de Jenifer Guedes
(RS). O título, coerente com aquela proposta de “não-dançar”, acaba
por citar e desconstruir possibilidades de dançar e de se (re)fazer
a história da dança. Pelo método da citação distorcida (como os espelhos
de Escher), Jenifer recontextualiza o corpo e sua ex-tória à sua própria
maneira. Como no Anel de Moebius, o cinismo inteligente de Aqui jazz
inverte o sentido de elementos categorizantes datados, virando-os do
avesso como num corpo estripado. As cenas são dispostas linearmente,
e numeradas uma a uma, como numa série racionalmente organizada. Afinal,
não é nas aulas de dança que aprendemos a numerar nossos movimentos,
transformando o corpo numa máquina eficiente e produtiva? E dentro desta
estrutura linear, a torção da inversão confunde e contamina. O feminino
é inclusivo e transgressor. Nesta inversão radical, vale tudo. Cada
um de nós pode, inclusive, sugerir novas cenas, a partir de nossas próprias
experiências de dança (foi o que fiz no tal jantar após o espetáculo). Aqui
jazz é um mosaico de corpos em transformação, onde a dança jazz
e renasce como muitas formas não-formas, sempre e ainda desconhecidas.
Dança é pensamento, memória, diálogo, relação, conexão. “Olho, logo
danço”, nos afirma Jenifer em uma das cenas, movendo apenas os olhos,
de maneira teatral e expressiva. Pelo espelho distorcido de Jenifer,
percebemos que, como a dançarina, nós espectadores estamos olhando –
logo, dançando -, todo o tempo! Na dança clássica indiana, com mais
de dois milênios de história, toda a expressão facial resulta da expressão
dos olhos, e fazemos diversos exercícios somente para treinar esta movimentação
específica. Com Jenifer, Aqui jazz Descartes e renasce uma tradição
contemporânea. No entanto,
o cômico ainda não tem o lugar de destaque que merece: Há algum
tempo assistimos grandes temas tratados com o riso, entretanto, como
desde a Grécia Clássica, a comédia é tida como um gênero menor e os
insistentes movimentos neoclássicos recolocam essa hierarquia, mesmo
tornando um gênero crítico e descritivo a comédia permanece desvalorizada
dentro das produções teórico-críticas, ainda que algumas obras sejam
levadas a sério e bem consideradas dentro do cânone. Uma delas é Macunaíma
de Mário de Andrade, que encena a pura crise da formação identitária
brasileira. Contudo, coube ao épico roseano Grande Sertão: Veredas o
lugar máximo no panteão de cânones brasileiros, pois nele a crise do
masculino é ainda tratada de maneira clássica, como epopéia. ... A comédia
e seus signos estão aí, bem diante dos nossos olhos, a tratar com riso
a crise masculina decorrente da perda do lugar ativo no mundo, que ocupou
com exclusividade. Na produção mais tradicional, a mulher ativa aparecia
travestida de homem, como as donzelas guerreiras que se multiplicam
na própria cultura brasileira: Diadorim, Isabel, de A Muralha, Luiza
Homem, Maria Moura. (ALMEIDA 2006, p.6) Apesar
do título também indicar um “aqui jazz...”, Era uma vez Tróia
não reescreve nem transforma o passado. Mesmo com os gestos bem organizados,
claros e pausados, como numa meditação, Patrícia Reis Braga (PR) parece
atuar um Era uma vez em Tróia, confirmando a cada segundo a repetição
e hegemonia de um passado estável e ideal. Seu corpo demonstra o texto
com ações ilustrativas e bidimensionais como se fosse uma folha de papel
dobrando-se e virando-se para um lado ou para outro e mudando de nível.
Após o espetáculo, alguns discutiam se a obra cabia no evento Conexão
Sul, por tratar-se de teatro, e não de dança. A questão mais importante,
como já vimos, não seria esta. Era uma vez Tróia pode ser considerada
dança ou teatro, mas definitivamente não é arte a partir do corpo,
e sim com o corpo. Este continua seguindo comandos de outra natureza,
organizando suas ações segundo discursos externos a sua (i)lógica. Aqui
ou em Tróia, como muitas vezes, era uma vez o poder do corpo. Curioso
foi ver que corpos quase parados, em uma obra criada por um artista
plástico (como Laban), pudesse evidenciar tanto a voz silenciosa do
corpo (pessoal, social, cultural, etc.). Figuras e Fantasmas,
de Elcio Rossini (RS), expõe o corpo como trânsito de imagens a partir
não da interação desnecessária com um maquinário tecnológico futurista,
mas com objetos-relíquias carregados de história/estórias. Na inversão
corpo em repouso e objetos em movimento, estes ganham vida e expõem
a objetificação daquele no cotidiano. Como no Anel de Moebius, nesta
interação ação-repouso, objeto-sujeito, presente-passado, reina a recíproca
transformação. Figuras e Fantasmas, por fim, emergem destes corpos
dinâmicos humanizados (ao invés de “pós-humanos”, como nos vem sugerindo
discursos de arte e tecnologia). Como Cínthia Kunifas e Mônica Infante,
Elcio Rossini nos mostra uma coreografia do tempo, o avesso de uma coreografia
do movimento. Segundo
Edvaldo Souza Couto (2000, p.101), o corpo contemporâneo entrou numa
fase de repouso e ostracismo. Em meio a máquinas cada vez mais rápidas
e da onipresença da informação (inclusive da telepresença), o corpo
não precisa mais se locomover e sua materialidade virou um empecilho
para a velocidade. Figuras e Fantasmas reverte este repouso em
um cínico espelho social e artístico de olhar e ser olhado, fazendo-nos
perceber nossa impotência diante da compressão do tempo na contemporaneidade
e de exigências produtivas baseadas nas máquinas. Nesta interferência,
o público se move pelo salão e os performers assistem de um dos
lados. Já em Reconhece?, do Grupo de Risco (RS), os performers
vão aos poucos se mesclando com o público, quase que imperceptivelmente,
e de repente começam seus deslocamentos, cortando o espaço do público
em rotas e percursos por entre os espectadores e objetos. Criada
a partir de motifs do Sistema Laban/Bartenieff, Reconhece?
atravessa fronteiras entre arte e cotidiano através do movimento.
A (não-)dança de Reconhece? não está na pausa de Fantasmas
ou no tempo dilatado de Corpo Desconhecido, mas na tal “simples
naturalidade” dos movimentos, como se nunca tivessem feito uma aula
de dança e, justamente por isso, fossem capazes de dançar. Em Reconhece?, todos os movimentos “dançados” pelos performers
poderiam tranquilamente ser feitos por qualquer um de nós do público.
Não são movimentos de exclusão técnica. No entanto, para sua execução,
os performers aprenderam uma dinâmica fundamental: aquela entre
corpo e escrita, movimento e notação. Esta conexão entre ação e cognição
torna os movimentos intrigantes, pois vemos que todos fazem algo de
similar e conectado entre si, mas cada um o faz da sua maneira. Ou seja,
mesmo que a notação seja semelhante para todos, ou que se alterne entre
um e outro dependendo do momento, cada corpo reescreve estes traços
de ausência em um novo texto dançado que é simultaneamente pessoal e
integrado no seu com-texto. Às vezes,
no entanto, um ou outro performer parecia tão preocupado em agir
conforme a notação (“dançar conforme a música”), que parecia seguir
ordens, fazendo as ações como em uma série programada sem repouso. Talvez
essa fosse a proposta do motif, mas outras opções podem ser exploradas
como parte do processo aberto de criação proposto pelo Grupo de Risco.
Poderíamos, por exemplo, incluir mais símbolos de repouso (pausa dinâmica)
nos motifs, ou aumentar o tempo para cada ação e pausa, para
que cada performer pudesse explorar mais as qualidades “entregues” ou “femininas”.
Ou poderíamos ainda experimentar não apenas improvisar sobre o motif
(que em si já são estruturas abertas), mas realmente extrapolá-los e
(re)criar outro motif (uma variação do primeiro), num processo contínuo de esc Outro exemplo
de fronteiras permeáveis foi Resiliência, que inicia com Silvia
Nogueira (PR) vindo ao palco calmamente a partir de uma das cadeiras
da platéia, e termina com aplausos da própria dançarina no palco. A
partir de estímulos internos, seus movimentos são arredondados e desembocam
um no outro como em um ritmo de água percorrendo riachos e cachoeiras,
às vezes criando figuras caricaturescas quase cômicas com sua postura.
Através de princípios do Centramento Corpo-Mente (Bonnie Bainbridge
Cohen, aluna de Bartenieff), Resiliência demonstra que o futuro
definitivamente não está na tecnologia de ponta (o que aliás soa bem
masculino), mas na fluidez feminina que vai, despretensiosamente, Fazendo
Conexões (Making Conne Aliás,
Fazendo Conexões estão Valéria Vicente (PE) e Natasha Melo (Uruguai).
Elas vêm coordenando projetos de coleta, armazenamento e divulgação
digital de dança (incluindo fotos, vídeos e textos) em Pernambuco e
na América Latina, respe Segundo
Sterlac e Virilio (in COUTO 2000, p.112), “tanto os órgãos e os membros
como a mente e os ritmos humanos serão insuficientes, anacrônicos. Aquele
homem, cujo corpo não esteja integrado na performance dos aparelhos
técnicos, será um novo excluído da sociedade tecnológica”. Para estes
autores, a única saída para o corpo humano é ser colonizado pelas tecnologias,
inserindo-o então na velocidade absoluta das teletecnologias. Mas Resiliência
demonstra que a técnica de hoje serve justamente para inundar e
incluir todos os ritmos, a partir dos corporais, inclusive aqueles em “harmonia” com a destruição
da natureza. A partir de uma técnica de dança que prioriza órgãos, fluidos
e ritmos do corpo, Silvia apresenta aquele frescor de quem nunca fez
uma aula, sugerido por Douglas Dunn. Resiliência integra o espontâneo
e o simbólico, mostrando que o corpo é infinitamente criativo justamente
por ser insuficiente e anacrônico, características inerentes aos seres
humanos (pelo menos àqueles modestos o suficiente para aceitar isso,
sem a ilusão da “perfeição” do corpo-máquina em velocidade “ideal”).
Resiliência poderia muito bem se chamar Quem tem medo de ser
simplesmente humano?. Então esta
sim é que é uma opção absolutamente contemporânea e futurista, e aliás
bem mais corajosa e transgressora do que se deixar colonizar por mais
alguma coisa a esta altura da história humana, de pós-colonialismo,
pós-estruturalismo, pós-modernismo, etc. No delírio do falo progressista
e imperialista, artistas como Sterlac preocupam-se com “condições da
necessária extensão da 4. Referências
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Notas: [2] O grupo pioneiro de dança pós-moderna - Judson Dance Theater – fundou-se a partir de um workshop com o músico Robert Dunn, pilar fundador do Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies (BANES, 1999, p.94 e BERRY, 1993). [3] Laban usou o termo “encantado” ou “mágico” (spell drive) para descrever um impulso expressivo que, ao manter o tempo constante, hipnotiza e prende a atenção dos espectadores.
Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano IV - Número 06 - Outubro de 2006 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores. |