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Arte e sensação: A natureza sintética da sensação na experiência artística segundo Gilles Deleuze.
Autor:
Eduardo Cardoso Braga - eduarbraga@terra.com.br - eduardo.cbraga@sp.senac.br

Resumo:

Trata-se de investigar as relações entre a sensação e a arte, em particular, a natureza sintética da sensação expressa pela arte, tal como formulada pela filosofia de Gilles Deleuze, especialmente em sua reflexão sobre as pinturas de Francis Bacon, publicada com o título de “Lógica da Sensação”. Assim procedendo, desejamos mostrar a atualidade desta reflexão estética, vinculando a arte ao terreno da experiência transformadora, do Devir expressivo e do nomadismo subjetivo e cultural.

Palavras-chave: Arte, Estética, Filosofia, Gilles Deleuze, Sensação, Francis Bacon, Filosofia da Arte, Teoria da Arte, Pintura, Empirismo, Catarsis.

Abstract:

It is treated to investigate the relations between the sensation and the art, in particular, the synthetic nature of the sensation in expression for the art, such as formulated for the philosophy of Gilles Deleuze, especially in his reflection on paintings of Francis Bacon, published with the heading of  “Logic of the Sensation”.  Thus proceeding, we desire to show the contemporary of this aesthetic reflection, conecting  the art with the land of the transforming experience, the  Becoming expressive and the nomadic subjectivity and cultural.

Keywords: Art, Aesthetic, Philosophy, Gilles Deleuze, Sensation, Francis Bacon, Philosophy of the Art, Theory of the Art, Painting, Empiricism, Catarsis.

Quando Aristóteles refletiu sobre o problema da tragédia criou duas vertentes que abordam a arte segundo perspectivas diferentes e permanecem até os dias de hoje. A questão apresenta-se no conceito de catarsis [1] (ARISTÓTELES, 1957), o qual permanece moderno, sendo retomado pelas reflexões estéticas contemporâneas. Um dos problemas conceituais que Aristóteles encontra no tratamento da tragédia  é a natureza quimérica do chamado “prazer estético”; isto devido a tragédia realizar-se com cenas de homicídios, infanticídios, incestos, traições, sacrifícios humanos, etc. Apesar disso, a platéia está formada por um público numeroso, atento, que sente um “prazer estético” diante desse espetáculo sanguinário. Sem dúvida, estamos em face de uma situação ambígua. A resposta a esse problema dividirá a estética em duas grandes vertentes. Segundo Aristóteles, a razão deste extraordinário fato consiste na instauração de um processo psicológico no espectador, que finalmente é conduzido, através de uma série de horrores, a um estado de purificação, precisamente uma catarsis, que elimina as sombras da angústia e ilumina a consciência com uma nova e pura luz. Porém, a passagem onde Aristóteles desenvolve essa reflexão [2] possui enormes ambigüidades, sendo, segundo os eruditos, de difícil tradução e gerando, devido a este fato, várias e controvertidas interpretações. Uma delas estabeleceu o foco da comunicação artística no fruidor e sua psicologia, dando origem às diversas estéticas da recepção. A outra vertente interpretativa é inaugurada por Goethe (GOETHE, 1994) intuindo que o processo catártico tem lugar fisicamente sobre o cenário e não na psique dos espectadores. A catarsis é exibida e não experimentada, ou melhor, o fato de experimentá-la subjetivamente é somente uma conseqüência do fato de tê-la exibido claramente. A genial interpretação de Goethe foi retomada por muitos teóricos contemporâneos. Um exemplo marcante é G. F. Else (ELSE, 1957) que reforça a interpretação de Goethe realizando uma análise rigorosa do ponto de vista lexicográfico e gramatical (BEARDSLEY, 1966). Também para Else, a catarsis acontece na cena, o que implica uma concepção arquitetônica do drama que termina por assumir uma unidade própria, independente da resposta emotiva do espectador. A essência do drama consiste, precisamente, no fato de conter sua própria resolução.

Assim, temos as duas linhas básicas na interpretação do processo estético. Por um lado, a interpretação “objetiva” ou “ontológica”, com idealização da forma e a presença de uma “conclusão”, respeitando uma estrutura arquitetônica, por vezes temporal. A outra interpretação, a que transfere a catarsis para a mente do espectador, revela uma direção subjetiva. A evocação de um estado interno “alterado” mostraria nossa própria natureza. Assim como um relâmpago ilumina uma paisagem, as emoções mostrariam a nós mesmos nossa própria natureza. Estas duas vertentes, a catarsis na própria obra ou na mente do espectador, introduzem a tradicional disputa entre sentidos e razão.

Diante dessa discussão, Gilles Deleuze ocupa uma posição singular e interessante. De um lado ele admite que a arte tem estrutura e realidade própria. Assim sendo, a realidade da arte seria ontológica, revelando o seu próprio ser. Entretanto, Deleuze nega a existência do ser como universal, como essência imutável. A realidade da arte estaria do lado do vir-a-ser num permanente nomadismo. Numa obra de arte existe uma tensão interna, onde se materializam forças não sensíveis. Como conseqüência, essa tensão coloca a arte como potencialmente capaz de provocar sensação. Teríamos então em Deleuze uma arte autônoma, com realidade própria e independente do espectador, mas potencialmente com a capacidade de provocar sensação neste fruidor, cujo resultado seria novas conexões no cérebro num permanente Devir, ou seja, num permanente vivenciar de outras realidades. Este trabalho pretende explorar essa singular característica da reflexão de Deleuze sobre a arte.

As estéticas, tradicionalmente, refletiram sobre a sensação assumindo uma posição psicologista, sob a perspectiva do fruidor; em suma, são estéticas da recepção. Deleuze subverte essa postura, pois apesar de situar a arte na sua capacidade de provocar sensação, a análise desta sensação se dá na própria obra, com lógica própria e não na mente do fruidor.

A aventura de Deleuze no desvendar da lógica da sensação começa com seu primeiro trabalho sobre a filosofia de Hume: “Empirismo e Subjetividade” (DELEUZE, 1953). Nesta obra, trata-se ainda do Deleuze Professor, comentador da Filosofia de Hume, que apenas mais tarde se tornará o Deleuze filósofo. Aliás, é bom que se diga, Deleuze foi um excelente comentador, suas obras sobre Hume, Espinoza, Kant e Bergson, são bibliografias obrigatórias no estudo de História da Filosofia nos Departamentos de Filosofia ao redor do mundo. Deleuze, em “Empirismo e Subjetividade”, já chamava atenção para a importância da sensação enquanto conhecimento, além do uso do verbo ser enquanto partícula, verbo de ligação (é). Esta leitura torna Hume um filósofo antiplatônico, já que na tradição da metafísica platônica o verbo ser tem uma densidade ontológica de verbo intransitivo: Ser, com S maiúsculo. Na abordagem deleuzeana, o verbo ser tomado como verbo de ligação elimina a densidade ontológica, estática, universal e moral, transformando-o numa ação que liga, que conecta para produzir conhecimento e sentido. Alguns estudiosos de Deleuze o chamam de o “Grande Experimentador” (ALLIEZ, 1996), pois sua filosofia é um chamado para a experiência e a negação de conceitos abstratos universalistas, anteriores à experiência, os quais facilmente se tornam modelos moralizantes.

Por tudo isso, o conceito de sensação é de fundamental importância para a filosofia de Deleuze.  Queremos, então, estudar este conceito tal como aparece na obra “Lógica da Sensação” (DELEUZE, 1981) e estabelecer algumas conexões com o conjunto conceitual de sua filosofia.

O conceito de “sensação” possui uma multiplicidade de significados, variando segundo contextos e épocas. Houve filósofos que consideraram a sensação como um modo inferior de conhecimento, por vezes chegaram mesmo a duvidar que fosse propriamente conhecimento. Por exemplo, Platão (PLATÃO, 1993) afirma, contra os filósofos sofistas de sua época, que a sensação, ou seja a “percepção sensível”, não proporciona verdadeiro conhecimento, nem mesmo das próprias coisas sensíveis, pois estas somente podem ser compreendidas à luz das Formas, entidades não sensíveis. O mundo sensível, para Platão, é sombra, formada por cópias ou simulacros das verdadeiras Formas [3]. Pela sensação, por exemplo, pode-se apreender uma cor, mas não se pode dizer que a cor apreendida é semelhante ou não à percepção sensível de outra cor. É a mente, a natureza intelectual do homem que compara as sensações e emite juízos sobre sua natureza. Assim, na filosofia platônica, a sensação abrange tudo o que chamamos de percepção, sendo esta considerada como uma apreensão de natureza não intelectual. Sensação e intelecto são naturezas diferentes e por vezes divergentes.

Esta concepção de separar sensação e intelecto, com raras exceções permaneceu até a filosofia moderna. Descartes ainda afirmava que a sensação é “um modo confuso de pensar” (DESCARTES, 1973). Durante toda a época do “Grande Racionalismo” do século XVII foi outorgado um lugar subordinado à sensação na estrutura do conhecimento.

A situação mudou com a entrada em cena dos empiristas, os quais destacaram, em compensação, a importância do sensível. Para Hume, o sujeito cognoscente é um “receptáculo” no qual ingressam os dados do mundo exterior transmitidos pelos sentidos mediante a percepção (HUME, 1989). Os dados que ingressam nesse sujeito são chamados de sensações por Hume. Essas sensações são a base de todo conhecimento. Entretanto, o conhecimento não se reduz a elas. É necessário que as sensações sejam ligadas a outras sensações, para tornar possíveis operações como recordar, pensar, ajuizar, etc. Caso contrário, o conhecimento seria apenas uma série desconexa de dados presentes. Assim, é necessária uma segunda fase do processo cognitivo, para que o conhecimento se processe em meio a presença das percepções continuamente mutáveis. A inferência somente será possível ao se estabelecer as relações de idéias formadas pelas sensações. Assim, no empirismo de Hume existe uma diferença básica entre os fatos e as idéias, sendo as relações entre as idéias meras possibilidades de combinação derivadas das sensações reais. Evidentemente, estas podem conduzir a um processo de reflexão, mediante o qual se torna possível o reconhecimento de conceitos e, em geral, de algo que poderíamos chamar de “universal”. Entretanto, isto não significa que o “universal” seja aceito como propriamente real. O empirismo de Hume manifesta especial desconfiança em relação a tudo que apareça como “abstração” e “universalismo”.

O importante deste breve e obrigatoriamente perigoso resumo é o fato do empirismo de Hume estabelecer uma importância para as sensações como fonte de conhecimento; cabendo ao sujeito cognoscente, que não passa de um “feixe de sensações”, relacionar estas, formando idéias através do hábito. Entretanto, existe um perigo cognitivo. Na formação das idéias pode acontecer o afastamento da sensação original, tornando-se abstrações que possuem apenas uma tênue relação com o real. Importante também reforçar que o primeiro grande livro de Deleuze, “Empirisme et subjectivité”, é uma reflexão e um comentário sobre a filosofia de David Hume. Também Deleuze foi o responsável pelo verbete “Hume” para a importante “Histoire de la philosophie” de Châtelet (CHÂTELET, 1972). Evidentemente que isto não foi por acaso. Existe efetivamente em Hume o convite a permanecer perto das sensações como a fonte da “Grande Experiência” e realizar conexões a partir destas sensações, bem como a desconfiar de tudo o que é fixo, abstrato e universal.

Assim, a sensação passa a fazer parte da malha conceitual da filosofia de Deleuze. Ela é explicitada no trabalho que Deleuze realiza sobre a pintura de Francis Bacon [4], Logique de la Sensation (DELEUZE, 1981. Cap. VI). Embora a questão permeia toda a obra, nos concentraremos sobre o capítulo VI: “Pintura e sensação”, onde nos parece que o conceito é claramente introduzido e explicitado.

Deleuze começa o capítulo afirmando que a sensação é uma maneira da pintura ultrapassar a figuração de tipo narrativo, ilustrativo e anedótico. Esta figuração seria para o homem contemporâneo os clichês que devem ser vencidos para que a arte possa atingir algum grau de significação. Existiriam então duas formas de vencer este clichê: a abstração e, numa linha aberta por Cézanne, a sensação. Mas o que seria essa sensação capaz de vencer a figuração ilustrativa? Ela é a via da “Figura”, a qual possui alguma referência no sensível, mas é desprovida de narração ou ilustração. Talvez poderíamos defini-la como um puro ícone, no sentido de ser auto-referente, desprovida de outras referências senão sua presença sensível. Assim, a Figura é uma forma sensível que provoca a sensação, agindo sobre o sistema nervoso. Ela dirige-se mais à carne, ao corpo enquanto presença e menos ao intelecto. Pela sensação, a pintura não se destina mais à narrativa, nem à fé, nem à beleza, ela se destina ao indivíduo, é a anexação do mundo pelo indivíduo. O artista pertencerá então à família do ambicioso ou do drogado, condenado como eles ao prazer renitente de si mesmo, ao prazer do demônio, do Devir cuja mutação me torna alguma coisa e, ao mesmo tempo, uma coisa me acontece, um pelo outro um no outro. A relação com o mundo não é mais de representação, mas de ação. Estamos diante do momento em que o interior se faz exterior, a reviravolta ou a transferência pela qual passamos para o outro e para o mundo como o mundo e o outro para nós, em outras palavras, a ação. Trata-se da apreensão mediante incidência sensível ou contato com as coisas sensíveis, no decurso de cuja atividade se apreendem semelhanças, diferenças, movimentos, etc.

Na sensação, a distinção entre o sujeito e o objeto é confusa, pois se estabelece em minha carne; o próprio espaço se conhece através de meu corpo. Mas se a distinção do sujeito e do objeto está confusa em meu corpo, também está confusa na coisa, que é o pólo das operações de meu corpo, o termo em que termina sua exploração, portanto presa no mesmo tecido intencional que ele. Podemos dizer que uma coisa é apreendida na sua carne; a carne do sensível, esse grão concentrado que detém a exploração, esse ótimo que a termina reflete a minha própria encarnação e é, ao mesmo tempo, a contrapartida dela. Há aí um universo com seu “sujeito” e com seu “objeto”, a articulação de um no outro, e a construção de um momento originário, criador de possíveis conexões, fundamento de todas as construções de significados. Todo o conhecimento, todo o pensamento objetivo vivem desse fato inaugural que eu senti, que tive, com essa cor ou essa figura, ou essa forma, ou qualquer que seja o sensível em causa. Uma existência singular que capta repentinamente meu olhar e promete-lhe uma série indefinida de experiências, concreção de possíveis desde já reais nos lados ocultos da coisa, lapso de duração dado numa vez. Temos assim, a sensação voltada para o sujeito, corpo no mundo, e também voltada para o objeto, fato no mundo, mas cujo significado é a mistura indissolúvel de um no outro.

O projeto de Francis Bacon é “pintar a sensação” o que “é uma questão muito densa e difícil a de saber porque uma pintura toca diretamente os nervos” (DELEUZE, 1981, p.20) A Figura é distorcida, contorcida num movimento de vai e vem sob um cenário impassível, limite do corpo e do movimento. Porém existe, como entre meu corpo e os objetos, uma interação entre o cenário e a Figura. Ambos se movimentam no sentido de passar de uma ordem para a outra. O corpo se alonga como querendo fugir de sua convulsão interna e atingir o cenário limpo e liso, sujando-o com sua deformidade e liquidez. De outro lado o fundo/cenário movimenta-se em direção da figura como buscando uma agitação que o tire de seu impassível colorido e lisa textura. Como se a experiência do estriado, do disforme o completasse atingindo sua significação. Cenário e Figura formam uma unidade indissolúvel em seu recíproco movimento em recíproca direção.

A sensação está ligada diretamente à Figura, sua portadora, e, pode ser definida de duas formas. Negativamente, seria o contrário da figuração, forma narrativa e simbólica que se dirige mais ao intelecto e a um conjunto de repertórios adquiridos. Positivamente, a sensação seria o próprio Devir, aquilo que conduz de um território a outro território. Neste sentido, a sensação possui um caráter sintético, pois ela é portadora de seqüências, séries de outras sensações. Ela seria como envelopes contento séries com diferenças de níveis. Lembremos de Proust (PROUST, 1954), onde um simples gesto de mergulhar uma torrada seca numa xícara de chá é suficiente para desencadear uma série de novas sensações atualizadas no corpo presente. De onde viria este caráter sintético que a sensação possui? De onde viria o poder de desencadear as séries?

Uma primeira resposta estaria na figura pintada, esta comportaria a unidade material sintética de uma sensação. Mas se assim fosse estaríamos novamente na chave do clichê, pois apelaríamos para a representação. Seria então a força do significado representado que faria o envelope das séries de sensações. Isto estaria na ordem do sensacional, do sentimento e não da sensação. Cabe aqui estabelecer uma diferença que nos parece fundamental, a sensação não é o mesmo que sentimento. Este último pertence à ordem do fixo, do manipulável, por isso mesmo, goza de imenso prestígio nos meios publicitários. Vivemos num mundo de clichês. O publicitário produz os clichês, os quais são exatamente o contrário de uma imagem. Estes são apenas excitações visuais que desencadeiam comportamentos estabelecidos. Neste sentido os clichês e os sentimentos que manipulam são o contrário da arte. Fazer arte, no nível em que se define esta atividade, é borrar os clichês, romper os comportamentos impostos, superá-los criando imagens óticas e sonoras puras, que, no lugar de desencadear comportamentos previsíveis nos indivíduos, toca -os em sua carne, em seu sistema nervoso. O mundo dos clichês cria um véu que impede ver uma imagem em sua fulgurante presença sensível. Quando olhamos uma imagem, projetamos toda uma série de significados que nos afastam da experiência direta. Trata-se então, antes de tudo, de tirar os véus, afastar os sentimentos, que são respostas padronizadas, atingir a sensação, o contato com a imagem pura. Esta pureza não significa nada de ontológico ou substancial, mas apenas ausência de clichês (DELEUZE, 1985, p.31-33). Como conclusão, devemos descartar a explicação do caráter sintético da sensação, usando a representação, ou seja, sua capacidade de desencadear séries de sensações devido ao significado referencial.

Forçosamente passemos para uma segunda possível explicação para a força sintética da sensação. Essa explicação deriva para uma ambivalência do sentimento provocada por uma sensação; em outros termos, uma imagem pode provocar uma sensação que envelopa sentimentos ambivalentes. Por exemplo, uma Figura que causa repulsa e amor, medo e fascínio, ao mesmo tempo. Certamente esta explicação é superior à anterior já que tira a fixidez codificada do sentimento tornando-o ambivalente. Entretanto, ainda estamos fazendo apelo ao sentimento e este somente tem sentido quando referenciado à coisa representada. Continuamos nos clichês da imagem narrativa. Não existe sentimentos na pintura de Bacon, como em toda a arte pura, somente existe na publicidade e nas artes publicitárias, como boa parte do cinema de Hollywood.

Para superar a dificuldade de apelar para o sentimento, poderíamos estabelecer uma terceira hipótese que daria conta do caráter sintético da sensação. Deleuze a chama de hipótese motora. Os diferentes níveis de sensação seriam como instantâneos do movimento, recompondo o movimento sinteticamente em sua continuidade. Exemplos disso, seriam as pinturas cubistas, futuristas ou o clássico e fantástico Nu Descendo a Escada de Marcel Duchamp. Para entender melhor esta interessante proposição nos serviremos da célebre tese de Bergson a qual consiste em dizer que as posições no espaço são cortes instantâneos do movimento (BERGSON, 1998). A sensação seria então esta espécie de movimento, sendo sua manifestação sensível uma espécie de corte que a guardaria sinteticamente. Entretanto devemos lembrar que para Bergson o verdadeiro movimento é algo distinto da soma de suas posições no espaço. Na continuidade de sua reflexão, ele foi além desta hipótese. Em sua segunda formulação não são mais as posições no espaço que são cortes instantâneos do movimento, mas o próprio movimento é um corte temporal do Devir ou da Duração (BERGSON, 1992, 1993). Assim, a sensação refere-se mais ao Devir que ao movimento (DELEUZE, 1966). Além disso, no caso da pintura de Francis Bacon o movimento, embora presente, não explica a sensação, pelo contrário o movimento é explicado e tornado sensível por uma sensação de elasticidade: “Seguindo a lei de Beckett ou de Kafka, existe imobilidade para além do movimento; para além do estar em pé existe o estar sentado, e para além do estar sentado, estar deitado, para se dissipar enfim” (DELEUZE, 1981, p.22). O movimento em Francis Bacon explica-se pela ação das forças invisíveis. Mas antes de tratarmos das questões de tornar visível forças que são invisíveis e da sensação como Devir, seguindo o raciocínio de Deleuze, devemos abordar uma última hipótese para o caráter sintético da sensação.

Até aqui temos visto a insuficiência das explicações, num movimento de complexidade e interesse crescente. A última hipótese explica os níveis de sensação os remetendo aos diferentes órgãos dos sentidos. Assim, entre “uma cor, um gosto, um toque, um odor, um ruído, um peso, existiria uma comunicação existencial que construiria o momento ‘pathico’ (não representativo) da sensação” (DELEUZE, 1981, p.22). Entretanto, não podemos substancializar esta hipótese e conceber uma unidade que exista anterior à própria sensação. Então para que esta unidade ocorra é necessário que cada um dos níveis, auditivo, visual, táctil, esteja tomado por uma potência vital que transborde os limites dos domínios, os atravesse e a unidade sintética seja então realizada. Ora, esta potência é o que Deleuze chamará Ritmo. Assim, esta hipótese na verdade corrobora a necessidade desta força chamada Ritmo para explicar o caráter sintético da sensação. No caso da pintura de Francis Bacon é o Ritmo que a atravessa, a percorrendo como se fosse uma música.

Retomando Bergson, o Ritmo é o mesmo que a Duração, sendo o movimento e a sensação atualizações e cortes desse Devir maior.

O Ritmo coloca a sensação em termos de Devir, deslocamento e movimento vital. Assim, as imagens de Francis Bacon seriam um espaço de múltiplos devires, potencialmente contraditórios e polimórficos. Na pintura as séries de sensação são desencadeadas graças ao Ritmo que impede estabilidades e identidades de fundamento, bem como rejeita a noção de experiência como algo cristalizado, monolítico. No Ritmo o que está em questão é a fixidez do centro, o qual na filosofia ocidental é representado pela noção de Ser. Na contramão, a noção de Devir engendra as diferenças criativas. O Ser, com sua fixidez, conduz para a não-mutação, estamos dentro deste terreno de fluxos descodificados, desmaterialização dos corpos, ou corpo sem órgãos. O Devir desterritorializa, é a força que movimenta, é “tornar-se humano”, “tornar-se menor”, “tornar-se mulher”, “tornar-se molar", “tornar-se animal”, “tornar-se carne de açougue”...A pintura de Francis Bacon, pela sua própria dimensão, nos coloca em sensação de tornar-se as figuras pintadas. Lembro-me de uma exposição no MASP, onde estava exibida a famosa pintura de Bacon figurando um cão com seu dono num parque. A dimensão do quadro nos coloca na mesma estatura do cão, com uma nítida sensação de “tornar-se animal”. Animal cuja ação do tempo torna-o disforme num permanente vir-a-ser também alguma coisa e, ao mesmo tempo, além do animal.

A contemplação de uma pintura desencadeia, através do Ritmo, séries de sensações, onde é preciso deixá-lo fazer-se livremente, acompanhar o nascimento contínuo que o torna sempre novo e, justamente por isso, sempre o mesmo. A sensação como Devir conduz à dimensão estética do inacabado. Os esboços são apresentados como quadros e, também, cada tela, assinatura de um momento de vida, ou de uma tentativa de tornar sensíveis sensações invisíveis, exige ser vista na série das sucessivas telas. Essa tolerância com o inacabado pode significar duas coisas: ou que renunciamos de fato à grande obra e agora só procuramos o imediato, o sentido, o individual, a expressão bruta; ou então que o acabamento, a apresentação objetiva e convincente para os sentidos, deixou de ser o meio e o sinal da obra verdadeiramente feita, porque doravante a expressão vai do homem para o homem através do mundo comum que vivem, das experiências que compartilham, sem almejar atingir o Ser, mas permanecendo no vir-a-ser, no Devir-louco, no livre jogo do Ritmo. Como diz Baudelaire: “que uma obra feita não é necessariamente acabada e uma obra acabada não é necessariamente feita” (BAUDELAIRE, 1998). A obra terminada, não é portanto um Ser acabado que existe em si como uma coisa, mas sim, um convite à sensação, à experiência, sem outro guia além do movimento da linha inventada, do traçado ritmado, da cor presentificada. Já que a percepção nunca está acabada, já que as nossas perspectivas nos dão para exprimir e pensar um mundo que as engloba, as ultrapassa e anuncia-se por formas sensíveis fulgurantes como uma palavra, um arabesco, uma dobra; por que a expressão do mundo estaria sujeita ao conceito abstrato? É preciso que ela seja sensação, isto é, que desperte e reinvoque por inteiro o nosso puro poder de expressar, para além das coisas já vistas. A pintura de Francis Bacon e as reflexões de Gilles Deleuze nos colocam o problema de comunicar-se sem o amparo dos clichês estabelecidos e das formas preestabelecidas, abrindo o sentido de todos nós.

Desta forma, a arte é autônoma, possui suas próprias leis e cujas relações internas a conduzem para o eterno Devir e, por isso mesmo, capaz de provocar uma profunda sensação em quem a desfruta. Esta é uma interpretação contemporânea da produção artística, definindo a arte como potencialmente capaz de produzir um choque, uma desestabilização temporária dos processos perceptivos, uma desterritorialização dos conceitos. Deleuze, ao refletir sobre a obra de Francis Bacon fornece um modelo estético mergulhado na experiência, sem, contudo, cair em subjetivismos ou psicologismos, que diminuem a autonomia do objeto artístico. Esta abordagem é especialmente interessante nos dias de hoje, pois temos observado a arte cair num excesso de abstração pseudoconceitual, num eterno já visto, destituído de memória e desprezando a experiência imediata. Colocar a arte na esfera da sensação revitaliza o seu poder de expressar e desestabilizar, obrigando uma desterritorialização conceitual e existencial.

Ilustrações

Fig.1 - Francis Bacon
Painting, 1946
Galerie Marlborough
Crédits photographiques:
Francis Bacon et Galerie Marlborough
 

Fig.2 - Francis Bacon
Portrait of Isabel Rawsthorne in a street in Soho, 1967
Galeria Marlborough
Crédits photographiques:
Francis Bacon et Galerie Marlboroug
 

Fig.3 - Francis Bacon
Self-portrait, 1973
Galeria Marlborough
Crédits photographiques:
Francis Bacon et Galerie Marlborough
 

Fig.4 - Francis Bacon
Study for a self-portrait, 1982
Galeria Marlborough
Crédits photographiques:
Francis Bacon et Galerie Marlborough
 

Fig.5 - Marcel Duchamp
Nu Descendo a Escada, 1912
Philadelphia Museum of Art

Referências Bibliográficas:

ALLIEZ, É. Deleuze Filosofia Virtual. Tradução de Heloisa B. S. Rocha. São Paulo: Editora 34, 1996.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, comentário e índices analítico e onomástico de Eudoro de Souza. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1. Edição, 1973.
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BAUDELAIRE, C. Au dela du Romantisme: ecrits sur l’art. Paris: Garnier Flammarion, 1998.
BEARDSLEY, M.C. Aesthetics form Classical Greece to the Present. New York: Macmillan, 1966.
________. La Durée et Simultanéité.  Paris: PUF, 1992.
________. La Matière et Mémoire.  Paris: PUF, 1993.
CHÂTELET (dir.). Histoire de la philosophie. Paris: Hachette, 1972.
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________. Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: Éditions de la différence, 1981.
________. Cinéma 2. L’image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.
ELSE, F.G. Aristotle’s Poetics: The Argument. Cambridge, Mass., 1957.
GOETHE, J.W. The Collected Works, Vol. 3. Essays on Art and Literature. Princeton Univ. Press; Reprint edition, 1994.
HUME, D.  An Enquiry Concerning Human Understanding. Oxford Philosophical Texts: Oxford Press, 1989.

PLATÃO. La Republique. Paris: Gallimard, 1993.
PROUST, M. A la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1954. No Brasil existe uma tradução, em 7 volumes, de Em busca do tempo perdido, cuja publicacão foi iniciada em 1951, Publicada pela Editora Globo, conta com excelentes tradutores como: Mário Quintana, Manuel Bandeira, Lourdes Sousa de Alencar, Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel-Pereira. Ver também: SHATTUCK, R. As idéias de Proust. São Paulo: Cultrix / USP, 1985.

Notas:

[1] A respeita do conceito de “Katharsis” (Purificação), ver: Aristóteles. Poética, 1449b e 1455b.
[2] A passagem a qual estamos nos referindo encontra-se em: Aristóteles. Poética, cap. VI, 1449b.
[3] Ver: Platão. República, 511e, 598b, 602a.

[4] Um bom site para visualizar as obras de Francis Bacon encontra-se em: www.francis-bacon.cx/  - (visitado em 29 jan. 2004)

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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